Petit Comité
Raramente eu ia a festas. Essa realmente era por uma boa causa. Geralmente sei o que vou achar nas festas, nada me surpreende tanto assim, não é como as festinhas de quando você é adolescente. Pra dizer a verdade, é totalmente ao contrário. Cheguei uns trinta minutos depois do horário combinado. Apanhei um terno comum, o do trabalho mesmo, tanto pra parecer que sai direto de lá para a festa (e assim justificar meus trinta minutos de elegante atraso) quanto para ser o mais discreto possível. Mal pus a mão na minha primeira dose da noite e me encosta um deputado que foi minha fonte numa matéria recente. Pelo bafo percebi que ele não passou a tarde na sessão. Ele me puxa forte pela gravata: “Seu filho-da-puta, você quase liquida minha carreira”. O velho babava pelo canto da boca e me cuspia enquanto enrolava a língua pra me xingar. “Vou acabar com você, fedelho! Você me paga por essa, seu...” Uma mulher loira soltou a mão do velhote da minha gravata, visivelmente constrangida, e o puxou para longe. Fiquei quieto, como se faz quando um cachorro bravo vem em sua direção. Se você fica quieto, o cão não se sente ameaçado, cheira, late, bufa, mas não morde. Aprendi isso na rua quando era criança. Encontro alguns colegas de faculdade. “Pôxa, você está bem,hein?” “Olha, li aquela sua matéria sobre as cervejarias e a isenção de imposto, muito boa!”. “E aí, rapaz, quem é vivo sempre aparece, né?” “Vamos marcar aquele futebol, me liga...”. Meus amigos de faculdade, e hoje colegas de trabalho são sempre legais assim. Há quem reclame das punhaladas profissionais, mas não tenho de quem me queixar, nunca tentei pisar no calo de ninguém. Uma socialite queria tirar foto comigo. “Sou amiga da Elizinha, Elizinha Cavalcante. Ela trabalha lá com você” Soltei um sorriso envergonhado. Elizinha pesa 150 kilos, vai a quatro festas, em média, por semana e cobra uma nota preta por foto em sua coluna. Tem fama de desbocada quando bebe, e trata mal 90% da redação. Eu sou os 10%, e algumas pessoas fazem piadinhas por causa disso, mas faço que não entendo, e a coisa fica por isso mesmo. Almeida, meu primeiro chefe-de-redação, me chama num canto, quer falar sobre o deputado bêbado.”o homem está fulo da vida. Rapaz, como você foi expor ele desse jeito?” Somos amigos, eu e o Almeida, foi meu primeiro chefe, segurou muito pepino pra mim. Sei que ele não quer favores do deputado, só manter uma diplomacia e segurar a fonte. Fontes são ouro. Só um doido como eu queima fontes assim. “Tudo bem, Almeida...Eu falo com ele essa semana, quando passar o porre”.Olhei pra mesa do deputado, ele gesticulava loucamente e a loira (que deve ser amante dele) afastava a mecha de cabelo do rosto, visivelmente envergonhada. Encontrei então com Gabriel, outro parceiro de faculdade. Soube que ele está separando, bebendo muito. Minhas terceira e quarta doses são com ele, lembrando que nossos primeiros empregos em redações foram fazendo obituários. Inventávamos as mortes mais bizarras pra preencher o obituário, daí um dia o Almeida, que acabou de me pedir pra fazer as pazes com o deputado mandou chamar os dois, queria saber quem inventava aquilo, achava o texto muito bom apesar da lorota. Dividimos a culpa: eu fui pra página de polícia e o Gabriel pros esportes; deslanchamos em direções diferentes. Fico arrasado junto com ele por essa maré ruim. “Boa noite...Achei que você não ia falar com a dona da festa...”. Meu senso de humor naturalmente negérrimo soltaria uma piada sobre ela dormir na geladeira, mas eu prefiri fazer cara de cão-sem-dono e me limitar a dar um “oi...”. “Adorei mesmo você ter vindo. Algumas pessoas apostaram que você não viria...” “Detesto desapontar as pessoas...” (como eu sou cínico. O que eu vim fazer aqui?). “Você já conhece o Alfredo?” “Dos jornais...”. (Alfredo Gama, playboy, adora cavalos, esquia em Aspen, morou na Suíça, quando criança, e em Israel, quando era adolescente e não sabia com que gastar sua rica mesadinha). “Olha, a Helena fala muito bem de você. Elogia sempre a sua inteligência e o seu texto. É um prazer conhecer você pessoalmente”. (Por que ela me mandou pra puta-que-pariu então?!) “Ah...Legal. Muita generosidade dela, faz parte do pacote de encantos”. Helena ria satisfeita, com cara de “finalmente-estamos-aqui-e-rindo-do-passado”. Imaginei os dois na cama e o uísque pareceu querer voltar boca afora. Hora de ir embora. Perdi o deputado de vista. Gabriel parece ter passado mal, sumiu também. Deus o abençõe e lhe dê uma boa ressaca. “Obrigado mesmo pelo convite. A festa de noivado de vocês estava ótima, mas eu pego no batente cedo, senão não mantenho a minha fama de mau...” (uma piada infame sempre deixa parecendo que está tudo bem). Dou as costas antes que ela me dê um beijo no rosto. Procuro a chave do carro e passo entre os dedos, tenho essa mania caso alguém resolva me atacar, e a fila é grande, todo cuidado é pouco. Encaixo a chave na fechadura. Juro ter ouvido apenas alguns poucos passos (Helena?). “Não vá deixar pra trás o que é seu, seu sacana!” O deputado acertou um tiro que me queimou um lado inteiro do corpo. Caio. (Helena...Helena...Cadê você, porra?). Gente ligando de celulares. Sirenes. Gabriel. Almeida. Ambulância. Apaguei. Os uísques e a mira ruim do deputado me custaram o baço e uns dias no hospital. Meu chefe me mandou um laptop de presente, com cartãozinho assinado pelos colegas da redação. Elizinha Cavalcante pôs uma notinha de pronto re-estabelecimento em sua coluna e veio me visitar. Gabriel ligou. O Almeida também. Perguntei do deputado: foragido, e além disso, tem imunidade parlamentar. Helena não ligou, nem veio me visitar.
1 Comments:
Adorei o texto!!!
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