O Tom Do Azul
Quatro anos antes de “Kind Of Blue” ser lançado, Miles Davis era mais um músico negro perambulando em farrapos por Nova York. Viciado em heróina, assim como boa parte de seus companheiros de labuta, Miles pendurava os instrumentos pelas pawn shops das redondezas e gastava cachês com o vício, aplacando a frustração de não poder dar asas a uma música moderna e inovadora que começou a se revelar em sua cabeça outros cinco anos antes, quando desembarcara na cidade com a desculpa de estudar música na renomada Julliard School. Filho de um bem-sucedido dentista de New Orleans (claro, até onde um negro conseguia renome na Ámerica pré-Luther King), Miles levava aparente vantagem sobre seus contemporrâneos por ter uma bagagem cultural mais elitizada. Enquanto seus colegas da noite se preocupavam com o do almoço ou do pico, ele passava horas estudando partituras de música clássica pelas bibliotecas de Manhattan. Admirava pintores e queria transformar seu som num equivalente sonoro do que Leonardo DaVinci ou Van Gogh tinham feito nas telas, mas esbarrava na segregação racial, no american way of life apenas para brancos e na falta de sintonia dos músicos, embora tivesse um faro para enxergar seus potenciais. Enquanto outros instrumentistas eram tratados como gado, obrigados a entrar pela porta dos fundos dos night clubs e tocar por cachês de fome, Davis namorava brancas, gostava de carros esporte e ternos bem-cortados. Sentia que precisava abrir espaço à força com sua música e ter a visibilidade que os talentos do jazz mereciam e não tinham. Uma noite teve seu orgulho ferido pela última vez. Semi-indigente na porta de um clube, foi reconhecido por um amigo arranjador, que vendo-o maltrapilho depositou uma nota de cem dólares no bolso de seu terno amafanhado. Aquilo lhe doeu mais fundo que todas as decepções na big apple, e Miles rumou para a casa de seus pais na Louisiana. Lá, trancou-se por três meses num celeiro e emergiu limpo do vício, pronto para tomar seu lugar não só como gigante do jazz, mas também como um ícone afro-americano, dando aos negros um espelho onde refletir seu orgulho, sua atitude e sua postura. Esse é apenas o ponto de partida para tentar decifrar “Kind of Blue”, o disco. Numa época em que artistas negros só gravavam em pequenos selos, de distribuição precária, Miles foi viver sua época de ouro na Columbia, ao lado de gente como Frank Sinatra e Tony Bennet. Cercou-se de bambas (aproveitando seu radar para descobrir talentos) e pôs pra fora uma música cheia de influências de clássico e oriental, rumando para horizontes onde a música podia ter mais espaço para improvisos e assim ser mais livre. Concepção, feitura e impacto de “Kind of Blue” são minusciosamente examinados neste livro por Ashley Kahn , jornalista e fã de terceira geração da revolução de Miles Davis. um trabalho de relojoeiro, com acesso a fitas master, mapas de gravação, relatórios internos da gravadora, e relatos das três únicas pessoas presentes as duas sessões de gravação ainda vivas (até 2000): O baterista Jimmy Cobb, um engenheiro de som e um fotógrafo do departamento publicitário da Columbia Records. Fundamental para entender a música moderna e seu efeito transformador/transtornador na sociedade da segunda metade do século XX.
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