Terehell

sexta-feira, maio 23, 2008

Cantiga de Viver

Nosso último tesouro vai começar a esvair-se. A língua portuguesa vai passar por um "delineamento", afim de ser padronizada para nós e os países menores onde ela ainda é falada. Ora, mero imperialismo cultural tardio. Padronizada a língua, ficará mais fácil aumentar o mercado para livros, filmes, seriados e novelas nesses pobres países, onde o português é língua oficial, mas em raros casos não se fala algum dialeto.

Aí eu parei pra me tocar de uma coisa: o quê mata uma língua? Sim, porquê todo mundo aqui conhece a expressão "língua morta"... A língua comete suicídio, se esvai, é mutante ou vai se degradando? Ou será o uso descontrolado de expressões estrangeiras algum tipo de grupo de extermínio?! Nossos descendentes, num futuro talvez bem próximo, precisarão de um dicionário da própria língua para lerem um Machado de Assis, um Guimarães Rosa ou um Saramago, quiçá...

Bom, não podia passar sem falar na partida do meu vizinho mais ilustre (não, não é o André Gonçalves, é outro vizinho ilustre...). Durante quase dez anos nos cruzamos pelos elevadores, no calçadão, dentro dos carros na garagem. Inúmeras vezes assisti aos imortais subindo e descendo para corteja-lo à hora do famoso beijú com café, poucos metros acima da minha cabeça; mas quero crer que, assim como eu, estas pessoas torciam para que ele achasse logo um canto sossegado onde encostar sua cruz. E neste mundo, só cada um sabe o peso de sua própria cruz. Adeus, 'seu' Dobal (como chamava a secretária de casa), no dia em que a língua-mater, a qual você tratou como um artesão, começou a ser mexida:


Sozinho na cama
um homem espera sua hora
A inesperada hora de tantos
A vida é uma cantiga triste
mais triste e à-toa que a das andorinhas
Las oscuras golondrinas
tão mal vivida
tão mal ferida
tão mal cumprida

A vida é uma cantiga alegre:
o primeiro sorriso de cada filho
e todos os microamores
que inutilizam a vitória da morte


P.S: Hoje choveu tanto que as ruas do bairro, excepcionalmente, se inundaram, como se chorassem a sua partida.

1 Comments:

At 10:31 AM, Blogger André Gonçalves said...

feliz coincidencia, e necessária.
eu não sou ilustre, caro ilustre vizinho!

abraço.

 

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