Terehell

quarta-feira, dezembro 24, 2008

Serviço Natalino

23.12 - 15:03: O Baiano me liga. Acordo pra atender numa ressaca fenomenal. "Tem um T2 pra você. Pega a sessão da 9 naquele cinema de sempre que seu contato chega junto sem falta. É serviço pro Grego. A ficha já caiu inclusive". O Grego pagava bem, adiantado, mas gostava de serviço bem feito, limpo, sem rastro. Contratava T2, dois de uma vez, pagava dobrado, só por garantia. Só quando passei pelas bancas me manquei que era ante-véspera de Natal. Ligava pra Curitiba ou não? Será que minha filha ia deixar aquele babaca do meu genro falando de futebol só pra me enrolar no telefone? Quase um ano isso... "Os Sete Samurais", gosto desse, desde molequinho. Dei aquele tempo na porta do cinema, pro contato me ver. Faltando cinco minutos, entrei. Com dez minutos de filme, ela senta ao meu lado. "Tinha uma coisa mais nova pra ver não? Isso é do tempo do meu avô, catso...". Tinha um perfume bom, almiscarado, me confundiu tanto que até me fez pedir a contra-senha. "Quer pipoca?". Ela nem pestanejou: "Odeio salgada. Prefiro da doce". O escritório me faz dessas de vez em quando, mas não duvido ser capricho do Grego. Saimos do cinema abraçados como se fossemos namorados e fomos baixinho nos interando da missão. "O Grego quer um ex-empregado, ficou com um seguro-desemprego maior do que devia, entende?" Ela falava e eu olhava os pisca-piscas de Natal. Lembrava da minha filha quando ela era pequena, eu um gerente de loja de móveis. Minha mulher passava depois do expediente com ela e nós iamos ver as luzes na rua. "Tá me ouvindo, belo?". "Tava destraído, desculpa...". Tinhamos de montar campana em um dos bingos que o sujeito abrira na periferia. No dia seguinte seria fechado pro Natal, o serviço era praquela noite. Sem falta.

24.12 - 01:30: Encostamos numa padaria. A campana tinha de pegar o sujeitinho fazendo a sangria do tal bingo; até melhor, pareceria assalto, ia deixar a dura dando voltas e voltas em torno do próprio rabo. Fazia um frio incomum mesmo pra madrugada naquela época do ano. Não demorou muito um monza vinho encosta, liga o pisca-alerta e um homem de uns quarenta anos, bigode farto escondendo uma cicatriz que nascia no canto do nariz e ia até o lábio superior, desce olhando pros lados antes de cumprimentar um moreno que vem de dentro abrir uma portinha estreita. É o tal que o Grego quer. "Nós entramos separados. Em quarenta ou cinquenta minutos acho que dá tempo de me insinuar pra ele. Vou dar uma de apressada e pedir pra ele me levar pro escritório. Você fica de olho no lance pra não perder sua hora de entrar lá e me tirar!". Minha filha tem um casal de gêmeos, dois anos de idade mais ou menos. Meu genro me manda foto, nunca vi as crianças pessoalmente. Quando elas nasceram minha filha já era distante de mim. Fui à Curitiba uma vez, tentei sentar e conversar com ela, explicar, pedir perdão, dizer que já havia pago pelos meus erros, que fui tão vítima do meu ciúme doentio quanto ela e a mãe. Ela apenas olhou nos meus olhos e me disse que sentia que ela própria é que havia pago o preço sozinha.

24.12 - 02:16: Estou na segunda dose de uísque. Minha contato pescou o peixe direitinho. Faro é faro: ela sentiu de longe que esse bingo não é para velhinhas inocentes jogando o do INSS. Isso aqui é um puteirinho, mais ou menos cheio de velhotes bêbados atrás de menininhas. O sujeito é meio arredio, quer arrasta-la prum motel, mas ela finge passar mal (é uma atriz) e os dois somem atrás da cortina do palco de karaokê. É minha deixa. O uísque desce rasgando na garganta. Fecho os olhos, vejo minha filha, ainda pequena, se dividir em dois: meus netos gêmeos. Ao abrir os olhos não me vêm dor-de-cabeça, nem tontura, só uma tranqulidade e o calor da bebida na boca do estômago. "Vamos lá, chefão, vamos botar essa pôrra pra trabalhar". O bom de ter uma automática é que você pode conversar com ela. Deslizo pra trás da cortina, tudo meio escuro. Me guio pelas risadas do contato e do sujeito. As paredes parecem ser de veludo vermelho, quase encandescente. Paro na porta do escritório e surpreendo nosso alvo mostrando pro meu contato um Papai Noel em miniatura que abre a capa vermelha e exibe o pau. Patético. Só por isso já merecia levar um teco.

24:12 - 03:07: Saimos voados pela portinha de onde o sujeito viera da rua uma hora antes. Por sorte um dos tiros pegou no segurança e o próprio peso do corpo dele escancarou a saída pra nós. Atravessamos a rua de subúrbio debaixo de chumbo e com uma sinfonia de cães da vizinhança abafando sirenes de polícia. Ou do pronto-socorro, nem olhamos pra trás pra ver. Pra despistar, levamos o caixa do bingo e tão logo voltamos pro centro saímos distribuindo todo ele pros mendigos da rua.

24:12 - 05:49: Deixo meu contato na boca do metrô e ligo pro Baiano. "O Grego já soube do serviço. Bem pensado isso de fugir com o apurado pra deixar os meganhas confusos, hein? Feliz natal pra ti!". Não tenho pra onde ir a não ser voltar pra casa, eu podia pegar um ônibus pra Curitiba, chegava pra ceia, mas não sei como seria recebido. Melhor ir com calma. Enfio o cartão novamente no orelhão e disco. Assim que atendem do outro lado chamo logo pelo nome do meu genro, mas outra voz me responde com outra pergunta. "Pai?! Assim tão cedo?"

1 Comments:

At 11:26 PM, Blogger  said...

Brigada.
Pra vc tb.

 

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