O Ramo
Passei pelo apartamento pra pegar algumas coisas. Na verdade não muito. Não há muito que um sujeito no meu ramo de atividade possa andar carregando por aí, fora a ferramenta de trabalho, lógico. A vizinhança é boa, dou bom dia a todos, faço tipo de bom moço. Até ajudei a senhora do 308 a subir com as compras uma vez. Faz parte. Apesar da pressa, giro a chave com calma pra não levantar a suspeita de quem possivelmente esteja saindo, mesmo nesse horário. Gostei desse apartamento, logo de cara. Um quarto e sala, central, com banca de jornais em frente, bastante discreto. A única coisa que não gostei foi o fato da porta do banheiro bater junto com a da frente. Eu mesmo disse que daria um jeito nisso num tempo ocioso, mas agora isso não vai ter mais importância. Jogo tudo que preciso na mala, algumas revistas e livros vão ficar de presente para o próximo inquilino. Cara de sorte. Ainda dá tempo pra um banho, tirar o cheiro do último serviço, entrar no ônibus pra fronteira do Mato Grosso com uma boa aparência, sem dar bandeira. Deixo o rádio ligado numa AM: Os americanos mexeram nas taxas de juros, o crescimento do país estancou, uma represa estourou em Minas e inundou meia-dúzia de cidades, um avião caiu entre a China e a Mongólia e um executivo de uma empresa de segurança foi encontrado morto com um tiro no meio da cara dentro do próprio carro, a polícia ainda não tem pistas do autor ou do mandante. Ótimo. Meu ramo continua o mais ágil, seguido pelos jornalistas. A polícia, ainda bem, continua lá no final da fila. Ninguém no corredor quando saio com a mala. Ninguém na portaria. Nessa hora da manhã, tudo vazio pelas ruas, fora os botequins com um ou dois bêbados discutindo sobre música ou futebol. Decido pegar um táxi só no bairro vizinho, isso me permite jogar fora a ferramenta ao passar pela praia. Me entendam: Meu ramo continua imperfeito, como sempre foi, o negócio é ganhar tempo e, lógico, resguardar a identidade. Hoje você é Mário, amanhã Roberto, semana que vem você pode ser João. Tanto faz, burrice é ostentar, deixar rastro. Quer rodar de carrão, comer mulher, viver de fazer nada numa fazenda bacana? Faz como eu, vai para o Paraguai, mas bem discreto, como se fosse um mero representante de creme dental. Chego na rodoviária e ainda dá tempo pra um lanche antes do ônibus pra Mato Grosso sair, tranquilo. De lá, só atravessar alguma avenida de qualquer cidadezinha fronteiriça, e um abraço. Peço um mortadela abaixado na chapa. Enquanto o gosto forte e meio rancento da mortadela toma conta do meu paladar, faço cálculos que a dita deve dar por mim quando eu já estiver pelo pantanal. A senhora do 308 vai ficar chateada quando me vir nos jornais e cartazes pela rua. Primeiro porque nunca imaginou que eu pudesse trabalhar nesse ramo; e depois por perder um vizinho que a ajudasse com as compras.
3 Comments:
Do Caralho!
Adorei.
E adoraria ser a próxima inquilina desse apartamento, só pra matar a curiosidade sobre o quê lêem os que trabalham nesse ramo.
Ou a Piauí, se cabe o trocadilho.
;o)
(Não me diga que a Piauí não circula em Teresina, que eu tenho um troço!)
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