Mondo Cane
Um dia passou a ser seguido pela figura de um cão. Um cão pequeno, feio, de grandes presas inferiores, que saltavam, salientes, por sobre as bochechas moles. De um humor um tanto estranho, ora preguiçoso, nas horas mais relaxadas, outras nervoso, tenso, excitado e alerta quando parecia encarar uma situação que lhe parecia adversa.
Por vezes acordou com o cão sobre ele na cama. Seu peso não o deixava levantar, e ao tentar remover o bicho, este levantava uma das pesadas pálpebras e parecia dizer-lhe “Fique aí mesmo, afinal quem tem dentes um dia acaba mordendo...”. Seguiam sempre os dois, lado a lado, na rua. Se parava para contemplar um edifício, uma praça, uma vitrine, lá estava o cão, roto, parado ao seu lado, um palmo de língua do lado de fora da bocarra, seu pêlo e pernas curtos, mas fortes, fatalmente o derrubaria se tentasse correr dele ou enfrenta-lo de homem para cachorro.
Acabou se acostumando a presença do bicho, mesmo não encontrando resposta do porque do mesmo segui-lo a toda parte. Entretia-se no trabalho e quando, num lapso, por um segundo, a atenção lhe fugia, lá estava o cão, olhar sonolento, cabeça chata apoiada nas patas dianteiras, fitando-o. Ia ao banheiro, e o quem-sabe-inimigo invisível dava uma pequena folga a sua vigília para beber água da banheira, talvez para não constrange-lo. Acordava no meio da noite só para ter certeza que ele estaria na entrada do banheiro e soltaria uma baforada de tédio, sob a cara mole.
Um dia notou que o cão ia ficando transparente, e, à medida que o tempo passava, sumia uma orelha, uma perna, parecendo estar sendo apagado por uma borracha. Não demorou e a presença do cão era sentida apenas metafisicamente, às vezes ouvia um suspiro de tédio, um espirro ou o tilintar da plaquinha da coleira, mas muito ao longe. Até que parou de sentir sua presença, e sentiu sua falta. Arrependeu-se de não tê-lo desafiado, levado uma mordida, teria lhe restado ao menos uma cicatriz. Pensou porque não lhe comprou uma bola vermelha, assim poderiam brincar em meio aos passeios; ou mesmo um osso artificial, para divertir-se vendo-o entretido com a peça falsa.
Um dia não resistiu mais: jogou de ponta a ponta no jogo do bicho. Cachorro. Deu milhar. Largou o emprego e abriu um canil.
2 Comments:
muito bom...
Já eu, soltei todos os meus cachorros... lembro-me que eram muitos. mas eu decidi repassar todo trabalho pra galera da "carrocinha".
:/
Postar um comentário
<< Home