Terehell

quarta-feira, maio 31, 2006

O Estrangeiro (1942)


(...)”Era o mesmo brilho avermelhado. Na areia, o mar ofegava com a respiração rápida e abafada das pequenas ondas que se sucediam umas às outras. Dirigia-me lentamente para os rochedos e sentia que a testa me inchava, sob o peso do sol.
Todo este calor se apoiava contra mim, opondo-se ao meu avanço. E cada vez que sentia o sopro quente deste calor enorme na minha cara, cerrava os dentes, apertava os punhos nas algibeiras das calças, retesava-me todo para triunfar do sol e da embriagues opaca que caía sobre mim. A cada espada de luz surgida da areia, de uma concha esbranquiçada ou de um vidro partido, os queixos crispavam-se. Andei assim durante muito tempo.
Distinguia, de longe, a pequena massa sombria do rochedo, rodeado de uma auréola formada pela luz e pela poeira do mar.
Pensava na nascente fresca que havia por detrás do rochedo.
Desejava reencontrar o murmúrio da água que dela brotava, desejava fugir ao sol, ao esforço, às lágrimas da mulher, desejava enfim, reencontrar a sombra e o repouso. Mas quando cheguei mais perto, vi que o Árabe de Raimundo voltara ali.
Estava só. Descansava de costas, as mãos debaixo da nuca, a cabeça nas sombras do rochedo e o resto do corpo ao sol. O seu trajo azul fumegava de calor. Fiquei um pouco admirado. Para mim, era história antiga, e viera para aqui sem pensar no caso. Logo que me viu, levantou-se e meteu a mão na algibeira.
Eu, muito naturalmente, agarrei no revólver dentro do casaco. Então, o Árabe deixou-se cair outra vez para trás, mas sem tirar a mão da algibeira.
Eu estava bastante longe dele, a uns dez metros de distância.
Adivinhava-Lhe por instantes o olhar, entre as pálpebras semicerradas. Mas a maioria das vezes, a imagem dele dançava diante dos meus olhos, na atmosfera inflamada. O barulho das vagas era ainda mais preguiçoso do que ao meio-dia. Eram o mesmo sol e a mesma luz, que se prolongavam até este momento.
Há já duas horas que o dia deitara a sua âncora neste oceano de metal fervente. No horizonte, passou um pequeno vapor.
Adivinhei-lhe a mancha negra com o canto do olho, pois não cessava de fitar o Árabe.
Pensei que me bastava voltar para trás e tudo ficaria resolvido. Mas atrás de mim, comprimia-se uma imensa praia vibrante de sol. Dei alguns passos para a nascente. O Árabe não se moveu. Apesar disso, estava ainda bastante longe.
Parecia sorrir, talvez por causa das sombras que se lhe projetavam na cara. Esperei. A ardência do sol queimava-me as faces e senti o suor amontoara-se nas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que a minha mãe fora a enterrar e, como então, doía-me a testa, sobretudo a testa e todas as suas veias batiam ao mesmo tempo debaixo da pele. Por causa desta queimadura que já não podia suportar mais, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estúpido, que não me iria desembaraçar do sol, simplesmente por dar um passo em frente. Mas dei um passo, um só passo em frente. E desta vez, sem se levantar, o Árabe tirou a navalha da algibeira e mostrou-a ao sol. A luz refletiu-se no aço e era como uma longa lâmina faiscante que me atingisse a testa. No mesmo momento, o suor amontoado nas sobrancelhas correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo e cobriu-as com um véu morno e espesso.
Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. Esta espada a arder corroía-me as pestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi então que tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou.
Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte onde as balas se enterravam sem se dar por isso.
E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça.”