Terehell

quarta-feira, agosto 08, 2007

Cheiro de Tinta



Muito provavelmente se você chegasse na casa da família Ramos, ali na Lizandro Nogueira, quase no Mercado Velho,lá pelos idos de 81/82, teria grandes chances de ter a porta aberta por um velhinho sarará, de óculos grossos, sotaque pesado de alagoano e que fazia caretas e ficava batucando nas coisas. Hermeto Paschoal, quando passava por aqui no extinto Projeto Pixinguinha, preferia a balbúrdia da casa dos filhos do advogado e gráfico Raimundo Ramos ao hotel pago pela produção. Raimundo Ramos foi amigo de faculdade do meu pai, que, anos depois da morte do patriarca, foi ter aulas de piano com sua filha Carla, e a reboque conheceu e passou a frequentar a casa da viúva Arminda, onde também moravam Rámses, Garibaldi e Renzo, todos músicos e todos esquerdistas apaixonados. Puxado pelo braço, a casa dos Ramos me é uma das mais doces lembranças da infância. Dois pianos davam as boas-vindas a quem entrava na casa, no corredor da porta. Espalhados pela casa, escaletas, flautas, violões, discos, partituras e exemplares de "A Voz Operária", o periódico oficial do PC do B ainda clandestino naqueles anos de abertura política. Uma open house como a dos Ramos eu só viria a conhecer anos depois no Zeus de Geraldo Brito e Vera Leite. Seus muitos quartos acomodavam tanto estrelas como Arthur Moreira Lima quanto ilustres e talentosos desconhecidos a época. Lá, com as cadeiras no quintal, ouvi o barítono Raimundo Pereira, recém-descoberto e transplantado para Teresina pela batuta do maestro Frederico Maroquim, entoar uma "Ave Maria", em frente ao quarto dos fundos onde Albert Piauí, ainda cheirando a Luzilândia, guardava os desenhos que passava o tempo inteiro fazendo num grosso colecionador de páginas avulsas. Rámses era a estrela da casa. Estudante de Direito e Letras, traduzia Ezra Pound, compilava o até a pouco maldito Mário Faustino, conseguia espaço nos jornais amordaçados devido às amizades de Zózimo Tavares e Kenard Kruel, e era articulador político de tudo quanto fosse esquerda possível, mesmo que as reuniões tivessem de ser disfarçadas em inocentes banhos na coroa do Parnaíba (sim, eu tomei banho na coroa do Parnaíba, morram de inveja). Graças a seu brilhantismo e inteligência, o clã dos Ramos sempre foi reconhecido mundo afora, principalmente na área musical. Carla Ramos é uma musicista combativa, idealizadora do show do dia internacional da mulher, evento que foi adotado pelo calendário festivo da cidade e é voz presente da classe na mídia. Garibaldi Ramos é músico renomado, tendo tocado pelo país inteiro, acompanhado e acompanhando artistas do mais grosso quilate, apesar de não "largar a base". Rámses nos deixou em 98, em Moscou, de onde me trouxe brinquedos artesanais de madeira quando lá foi a primeira vez. Morou anos na Tchecoslovaquia e com a queda do comunismo na virada dos anos 90, mudou-se para Brasília, onde trabalhou para a UNICEF e o Itamaraty como tradutor. Ironicamente, apesar dele e os irmãos terem trabalhado com parque gráfico, deixou vários livros de traduções, adaptações e poesias ainda por ver a luz do dia. Da última vez que esteve na casa dos meus pais me encontrou debruçado numa pilha de LPs do Black Sabbath. "Você anda ouvindo isso?", mas ao invés de me censurar, solfejou o riff de "Iron Man". A família Ramos é um patrimônio que os amigos já tombaram faz tempo e que o Piauí ainda vai abraçar.

1 Comments:

At 10:50 AM, Anonymous Anônimo said...

adoro essas tuas histórias fernando.
adoro.

[a propósito, a casa caiu fernando, arruma ai o link pro azar. beijos]

 

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