O Sonho
Acordara com um facho de luz amarela e incandescente entrando por um furo no teto do barracão. Amarela da cor das picadas das vespas que levara quando tinha seis anos de idade, ainda no norte. A mãe a catar-lhe os ferrões, o pai zunindo o cipó de aroeira, a febre, o castigo diante dos irmãos, olhos grandes, barrigas grandes de verme, o pavor nas bocas abertas, iguais as de Renato. O suor descendo pela espinha. Anos depois compreendeu que, como filho mais velho, tinha de servir de exemplo aos irmãos, e perdoou o velho pai; até sentiu uma gratidão pela surra, como um ato de carinho e de disciplina. A mala. Tateou o lado da cama e tocou a alça da valise de couro, escura e pesada. Dólares. Apertou mais ainda os olhos, tentando escapar da luz que agora parecia passear em direção a sua boca.Dedos amarelos de nicotina na mão de Apriggio, o cabelo amarelo de Laura. De repente tudo sumia numa mancha de vermelho. Sangue. E o vermelho desmanchava o amarelo, deixava tudo da cor de fogo. São João no Norte. Sim, era quase São João lá, época boa de visitar os seus. Tinha como ajudar todos agora, tinha dinheiro. Dólar. Um plano de saúde para o velho pai. Um dinheiro pros sobrinhos estudarem. Uma ajuda pras casas dos irmãos. Sim, daria pra todos. A outra mala. Tateou o outro lado da cama. Alcançou a outra alça. Ficou estatelado sobre a cama. Os braços abertos, uma mão em cada alça, um sorriso bobo nos lábios grossos. Foi voltando dos sonhos como que puxado por uma corda. Não havia vespas, nem fogo, nem febre, nem castigo. Sim, voltaria pro norte, ajudaria a família. E levaria Ângela com ele. Mas nem sabia onde acha-la. A única coisa que ainda o prendia ali, com aquela dinheirama, toda era a dançarina. Procurara pelo centro todo, todas as boates e nada. Não podia deixar mais o cartão, o triplo assassinato não saia dos jornais. Era um risco ainda maior que a burrice ainda estar ali. Mas não podia deixar Ângela pra trás. O celular toca.
“Gatão? Andou me procurando, é ?”.
“Nêga? Onde tu se meteu, diabo da peste? Virei as boate tudo te procurando!”
Ângela deu uma gargalhada rasgada, longa, profunda, como que guardada pra quando a peça fosse descoberta. Contou, ainda ofegante: “Não procurou pelo nome certo, Gatão! Mas eu te achei, danadinho. O que você quer de mim? Tô com horário apertado hoje, vou logo avisando...”
“Só conversar. Quero te fazer uma proposta”.
“Ih... mas que mané proposta?! Tá pensando que me come de novo sem pagar? Vá tirando seu cavalinho da chuva!”
“É só conversar mesmo. É coisa boa, minha nêga”
Sabia que Jorge, apesar de falar pouco sobre o que fazia, e do jeito grandalhão, era um sujeito de confiança. Mandou-lhe anotar o endereço.
Banhou pra se livrar dos restos do sonho. Voltou da porta pra apanhar uma guia na imagem de São Jorge instalada num criado-mudo. Despediu-se do santo. Não pretendia mais voltar ao barracão.
2 Comments:
parou por queeeeeeeeee?
adorei o texto.
beijo.
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