Terehell

sexta-feira, março 17, 2006

A Revoada


Lígia havia passado por três orelhões quebrados (“pra eu aprender a comprar créditos!”) e não havia conseguido avistar nem mesmo um Cosme-Damião. Imaginava que Isa devia ter bolado alguma idéia bem burra pra segurar o brutamontes dentro do Verdinho, o que só a fez gaguejar muito ao telefone quando achou um que finalmente funcionasse. Identificou-se como a secretária do marido do homicídio triplo, pediu uma rádio-patrulha e disse que havia perigo de novas vítimas, para não passar como trote. Voltou ao Verdinho a passos largos, bem a tempo de ver Jorge Lucena, óculos rayban e paletó muito bem passado, cruzar a saída. Pensou logo no pior e ao entrar no bar encontrou Isa, camiseta ensangüentada e um filete de sangue saindo do lóbulo da orelha.

“Cadê ele?!”
“Você tá sangrando!”.
“Não, é sangue da menina, a bala que matou ela só passou na minha orelha. Cadê ele, porra?!”

Jorge esperava o sinal abrir, na esquina, tal qual um gigante de mármore marrom. As duas malas pesadas pareciam carregar apenas plumas, tal era a facilidade e o pouco esforço que empregava nelas. Avistava de longe o ponto de venda de passagens. “BA-SE-AL-PE-PB-RN-CE-PI-MA-Leste do PA e Tocantins/Agora 7 dias por semana!”, anunciava um letreiro pintado a pincel atômico. Pensou no pai. A essa altura já teria avisado aos vizinhos e a parentada toda da sua chegada. Tal qual o filho pródigo da Bíblia que Padre Isidoro lia no catecismo. Achava bonita aquela estória. Não importava como ganhara aquele dinheiro, não mataria mais. Ao menos não via mais necessidade. Podia comprar um pedaço de terra bom, fazer uma irrigação, viver da roça e da feira. Chega daquele povo aprumado, falando difícil, daquela cidade que parece mais um monstrengo. Feia, cinza, fria. Lembrou do tal Jonas, o que foi engolido pela baleia, mas essa estória era a mãe quem contava.

“Só de ida pra Salgueiro, faz favor...”
“Pois não, conterrâneo! Vai pelo litoral ou prefere pegar a linha que vai pelo interior, até o Crato, via Campina Grande?”.
“Vou pelo interior mesmo (é mais discreto)”.
“Vai pagar em dinheiro ou no cheque?”

Jorge ia dizer dólar, só então se ateve ao fato de não ter trocado nada da moeda estrangeira dos assassinatos. “Vixe, amigo...Eu só tô com nota grande aqui”, tentou desenrolar. “Aceita uma parte e o resto deixo alguma coisa empenhada?” Em meio à barganha Jorge não notou a chegada de dois policiais. O balconista dá o alarme. “Valei-me, minha Santa Rita!”. Um dos policiais dá voz de prisão. Jorge não se altera.

“O senhor está detido para averiguação. Queira nos acompanhar”.
“Moço, deve estar havendo um engano. Eu estava aqui pagando uma passagem..”.
“Isso o senhor pode explicar na delegacia, junto com aquelas duas moças ali”.

Jorge avista Isa e Lígia no camburão. Isa com uma toalha encostada na orelha e Lígia ele reconhece como a secretária de Apriggio. “Olhe, seu moço, é engano. Eu nunca vi essas moças. Olhe, vou lhe dar meu cartão”. Jorge então saca a pistola, um barulho agudo espalha pânico pela calçada em frente, impedindo a aproximação do outro policial. Com um dos agentes no chão, Jorge tem tempo de pegar as malas e sair a esmo pela multidão, esbarrando o corpanzil em quem passa em sua frente. Isa desce do camburão, saí correndo pelo meio da rua, driblando a multidão. Percebe que Jorge vai perdendo velocidade. O peso das malas e os esbarrões a fazem emparelhar com o pistoleiro. Pensa na mãe, no pai, em Renato, na garota morta sobre ela no banheiro. Nem ouve Lígia chamar por ela logo atrás. Cruza um carro estacionado pulando pelo capô e agarra-se as costas de Jorge, que não tem muita dificuldade em joga-la contra a murada de um edifício de esquina. Atordoado, não vê o sinal fechado aos pedestres e é colhido por um caminhão de mudanças.

Arremessado à distância, larga as malas, que são esmagadas pelos carros que transitam. O conteúdo se transforma então em um tapete verde-cinza de Washingtons, Lincolns e Jeffersons, e logo depois em uma revoada inusitada no meio da tarde. A vista embaçada de Jorge Lucena vê a língua espraiada do dragão do devotado santo guerreiro, morta no meio do cruzamento, e logo depois a vê transformar-se numa revoada silenciosa de avoantes, que tanto o fascinava quando menino, lá no norte. Sim, ele vai para o norte. Vai encontrar a família, por as malas com dinheiro sobre a mesa do alpendre e mostrar ao velho pai. “É dólar!”.

4 Comments:

At 8:02 AM, Anonymous Anônimo said...

estou acompanhando sim.

 
At 10:44 AM, Blogger Mariana Arraes said...

você matou o jorge... aaff, eu tava adorando o jeito cretino e frio dele! bem que eu queria ser parecida... humpf!!

 
At 9:22 PM, Anonymous Anônimo said...

Meu nome é Jorge Lucena, e esse aí além de ser malzinho usa ray-ban!...Existiu mesmo esse Jorge Lucena? Onde se foi buscar esse nome?!...

 
At 9:28 PM, Blogger F3rnando said...

Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais é mera concidência desde antes de Janet Clair...

 

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