Genealogia
Meu bisavô Dondon foi dono de um jornal, de uma vacaria e de uma tropa de burros. Entrou para as elides da imprensa piauiense por empastelar quem não lhe pagava a edição diária. Também podiam ganhar linhas nada honrosas parentes, amigos e figuras da sociedade da época. Nos anos 20, o cemitério São José era um dos pontos extremos da cidade, e como não haviam rabecões, o corpo do finado era carregado (geralmente envolto num lençol, como mortalha, e numa rede, como caixão, artigo caro naqueles tempos) pelos familiares e amigos. Dondon tinha a macabra diversão de acompanhar os féretros e anotar quem deles debandava. A meticulosidade do obituário nos dia seguinte rendia muita confusão. Vivesse nos dias atuais talvez nem fosse classificado como jornalista, um fanzineiro talvez: era dono, editor, redator, repórter, tipografo e ainda fazia as vezes de jornaleiro, pois vendia leite in natura e água de porta em porta (não havia AGESPISA e Dondon era privilegiado por ter um poço cacimbão no amplo terreno no qual morava, hoje próximo ao aeroporto). Ao completar bodas, resolveu publicar um ementário sobre a boa convivência no casamento, ditando regras e saberes da política doméstica, incluindo aí espetadas na sogra e nos cunhados. Passou as bodas no manicômio da cidade (onde depois funcionaria a cadeia pública, que foi demolida para dar lugar ao ginásio Verdão), internado pelos filhos. Sem se fazer de rogado, ao sair do cárcere escreveu uma edição especial sobre as agruras junto aos doentes mentais. No Brasil da virada dos anos 20 para os 30, era comum os jornais serem arrombados e destruídos e “O Denunciante” não foi exceção. Suas máquinas e linotipos (pequenas peças de chumbo amarradas por uma liga de borracha que formavam os textos, tal qual um quebra-cabeça em forma de carimbo, a serem impressos) foram lançados às águas do Parnaíba, mas resgatados pelos meninos que por lá banhavam diariamente. Ainda alcancei alguns parentes que o conheceram em vida, entre eles uma das irmãs do jornalista Carlos Castello Branco, que lembrava que Dondon sempre passava para fazer visita aos parentes. De preferência na hora do almoço. Os parentes, mais por simpatizarem do que por temerem ser malhados, lhe faziam festa e nunca lhe negavam um prato de comida. Todas essas estórias são contos quase pitorescos, e são contadas não só por mim, mas por gente como Carlos Said, Paulo Vilhena e também por alguns metidos a estoriadores de marca menor, que captam para si exemplares antigos de “O Denunciante” e, penso eu, passam o dia a olhar sozinhos para ele, ou mesmo vangloriam-se de tê-los em seu poder. A Casa de Anísio Brito, o arquivo público municipal, tem exemplares do jornal em péssimo estado de conservação, e até mesmo nós da família temos material muito escasso. Pensando nisso, já há alguns anos atrás, tive o cuidado de microfilmar a única cópia de “O Denunciante” a qual tinha acesso. Esse microfilme (na verdade um negativo) hoje está no arquivo do sindicato dos jornalistas, a disposição de quem quiser vê-lo. Espero assim que quando algum picareta puxa-saco de academia de letras resolver escrever algumas linhas sobre meu querido bisavô, não o exalte apenas como um “doido-manso” de uma Teresina que não existe mais, mas com o devido respeito que lhe é devido pelo exercício da informação sem censuras, ampla e irrestrita.
1 Comments:
Aqui em casa havia uma cópia... Está devidamente guardada no cofre do seu Tio Alípio. Era engraçado ver como ele escrevia.
Isso sem contar as histórias que a minha mãe me conta... Dá um saudosismo, embora não tenha acompanhado essa época. Mas será se vale a pena juntar os mais velhos e editar algum escrito que reúna essas histórias?
Topas discutir a idéia?
Abraço
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