Terehell

domingo, março 19, 2006

O Pacote




Abriu a porta para apanhar os jornais e deu de cara (quase de pé) com um pacote. Pensou: Não estou esperando encomenda de ninguém. Checou o destinatário. Ele mesmo. Ao virar o pacote percebeu que o volume lá dentro era algo mais ou menos pesado pra ser frágil e vulnerável a quedas ou empilhamentos. No local do remetente um timbre com a inscrição “PODE SER ABERTA PELO ECT”, e vários quadrados para serem marcados em caso de devolução. Levou o pacote para dentro e colocou-o sobre a mesa de centro da sala. Ficou ali, de roupão e chinelos, ainda entre o sono e o sonho, imaginando que raio de pacote seria aquele. Procurou a portaria. “O correio deixou agora cedo era encomenda especial, até tive de assinar meu RG. Não é pro senhor não?”. Não ia ralhar com o pobre porteiro. A pior coisa pra ele seria levar um cagaço por conta de uma correspondência errada. Agradeceu a informação e desligou. Ficou em pé em frente à mesa de centro espiando o pacote. Cruzou os braços, tentou lembrar o dia da semana. Havia esquecido se ia receber algo? Até ali o pacote não tinha lhe desafiado a curiosidade, até porquê podia não ser seu. Mas tudo indicava que era, então poderia abri-lo. Brincadeira do pessoal do escritório? Não...Muito longe de seu aniversário ainda. Teria comprado algo naqueles programas que passam de madrugada? Por mais que a insônia castigasse, ele lembraria do gasto. Encostou o ouvido no pacote. Nem um tic-tac. Quem lhe mandaria uma bomba? , sorriu internamente. Tornou a pensar num trote, talvez algo pulasse da caixa. Passou a mão pela face, realmente não havia como aquele pacote ter ido parar ali por engano. Foi vestir-se. Talvez o pacote não estivesse mais lá na volta. Meia-hora depois vêio do cômodo acabando de ajeitar a gravata e o pacote jazia no mesmo lugar. Que tal ir pro trabalho e esvaziar a brincadeira? Quem sabe chegando lá todos ririam ou perguntariam se não tinha recebido nada de estranho em casa...O trabalho foi o mesmo de todos os dias, a exceção de uma reunião interna e sonolenta na parte da tarde. Até esqueceu do pacote. Entrou de volta em casa cansado, nem deu por ele. Mas têve um estalo de memória e voltou para contempla-lo. Quadrado, enrolado em papel marrom, desafiador. Sentou de pijama no chão da sala e encarou-o tediosamente. "Vamos pacote, me diga algo sobre você". Ocorreu-lhe então o ridículo da situação e decidiu livrar-se dele. Joga-lo no lixo? Certamente o devolveriam pelo endereço. Sim, o endereço do destinatário! O problema era quem seria o felizardo. O porteiro? O carteiro? Lembrou de uma vizinha que o aporrinhava com um violoncelo todo sábado pela manhã. A mocinha parecia ensaiar a semana toda fora de casa, mas aos sábados, justo o dia que podia dormir até mais tarde, ela castigava o instrumento já bem cedo da manhã. Refez a etiqueta do destinatário. Perfeita. Ainda mais perfeita seria a desculpa: o pacote fora entregue errado em seu apartamento. Para completar a perversidade entregaria o extravio pessoalmente. Bateu a porta da vizinha jurando se tratar de alguma matrona (Deve ser. Carregar um trambolho daqueles pra cima e pra baixo...). Uma moça de seus vinte e poucos anos, corpinho mignon, metida numa calça de pijama e vestida numa camiseta de propaganda política atende a porta. “Bom dia, sou o vizinho aqui de baixo. Esse pacote foi entregue por engano lá em casa, acho que confundiram os andares...” “Ah, o senhor desculpa o transtorno, viu? Obrigada por entregar”.“Não por isso, imagine, eu fiquei preocupado da sua mãe... tia... avó... enfim a destinatária podia estar esperando”. “Não, sabe que eu nem estava esperando nada?” Engoliu seco. A mocréia do violoncelo só existia em sua cabeça, ora vejam só. Talvez se tivesse aberto o pacote teria uma surpresa menor. Passaram-se então três dias e no sábado, contrariando o costume, não foi acordado pelo violoncelo. Nem lembrava qual a última vez que tinha sentado na sala para ler o jornal de sábado em paz, sem aquele som escroto do arco friccionando as cordas tensas e roucas do instrumento da vizinha . Ainda pleno de satisfação pelo sagrado silêncio, deu de cara com a matéria num canto de página: “Concertista Ganha Fortuna Inusitada e Muda Para o Exterior”. (Como? Como?? Como???) . Começou a ler tudo de maneira desconexa, de trás pra frente, de cima pra baixo, do fim para o começo. Um milionário excêntrico, dado às caridades, deixou uma clausula no testamento designando que as jóias da já falecida mulher fossem entregues a esmo, afim de não gerarem celeumas entre os herdeiros. As jóias foram despachadas pelos advogados mediante um sorteio entre mais de 5.000 endereços aleatórios. “E elas estiveram no pacote sobre a mesa de centro por um dia inteiro”. A matéria dizia ainda que a concertista quase não recebe a fortuna, avaliada em mais de 10 milhões de reais, por um erro do correio. Fora salva por um bondoso vizinho, que, notando a entrega errada, levou-lhe a fortuna em mãos. Caiu de joelhos, ainda de pijama, diante da mesa de centro.

1 Comments:

At 8:05 PM, Anonymous Anônimo said...

que viagem, hein? isso não acontece comigo... bj

 

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