Terehell

segunda-feira, março 27, 2006

Mentiras Só

Estava lendo uma passagem de "Misto-Quente", de Charles Bukowski, onde o personagem principal é obrigado a ir a um comicío do presidente dos EUA e fazer uma redação a respeito, à guisa de dever de casa. Sabendo que os pais não o deixariam ir, o pequeno inventa toda uma redação ficcional, que é escolhida pela professora para ser lida para toda classe. Ao final da aula, esta o manda esperar e o interpela se ele realmente foi ao comício. Diante da negativa envergonhada, diz ao jovem Henry Chinaski que isso só torna seu trabalho de casa algo ainda mais prodigioso. No caminho de volta para casa, pela primeira vez sem tomar cascudos dos meninos maiores, Chinaski mostra-se maravilhado. "É apenas isso que eles querem? Mentiras? É tão fácil assim?!".

Sim, nós artistas somos todos um bando de mentirosos. Stephen King escreve sobre assombrações e serial killers sem nunca ter visto um saci pererê sequer ou ter estado frente a frente com um matador; Johnny Cash escreveu sobre um cara que matou outro em Reno (a Las Vegas dos pobres)e agora se lamentava atrás das grades em Folsom Prison, lugar que ele levaria quase 25 anos pra conhecer pessoalmente; Monet criou cores desfocadas que não correspondiam objetivamente as paisagens que todos viam; sem falar no cinema, a mais mentirosa de todas as artes.

É isso que "vendemos": ilusões, fugas. Só esquecemos de avisar que é tudo ficção, que nomes e situações são meras fatalidades artistico-literárias, ou seja, nada daquilo deve ser levado a sério. Não somos fazedores de chuva, apenas damos um empurrão na válvula de escape. Isso nos joga, ás vezes, no que convencionamos conhecer como "sucesso", esse redemoinho desgovernado, uma roleta russa de neon cegante, o começo e o fim de tudo. Viramos personagens xerocados de nós mesmos, reféns silenciosos das mentiras que inventamos e vendemos.

De repente temos de ter a resposta para todos os dilemas, temos de compreender todas as dores da alma humana, quando não temos respostas nem pro que nos atormenta na hora de dormir ou apenas usamos de nossa arte para dividir, à esmo, uma dor pessoal. Somos mentirosos, vivemos e fazemos apologia da mentira, da fantasia, do faz-de-conta. Citando meu xará mais famoso, fingimos ser dor a dor que nem sequer sentimos.

A grande penitência é que somos mentirosos "do bem", fingimos e enganamos em favor do entretenimento, do ato de abrir uma janela salvadora para fora dessa casa em chamas chamada Realidade. Somos mentirosos, docemente mentirosos.

2 Comments:

At 4:23 PM, Blogger Juca said...

Isso, meu rapaz. As mentiras que que inventamos (Até por que se não fossem inventadas não seriam mentiras!) agradando ou não (entretendo?) são alimento para muita gente, o que me faz, às vezes, mas somente às vezes, questionar o conteúdo destas, a nossa responsabilidade. Talvez não seja nada, mas talvez signifique algo. Ou eu esteja aqui apenas mentindo, e não dê a mínima para quem vai ouvir ou ler o que componho ou escrevo.
Um professor de filosofia da arte disse que as inverdades ditas por um artista são verdades em um universo diferfente. Nós, doces mentirosos, somos, então, porteiros.

 
At 7:02 PM, Anonymous Anônimo said...

legal essa reflexão. somos todos mentirosos, sim. eu, você, quem usa as palavras, os sentimentos pra dizer o não-dito, sentir o que nem se sente, extravazar a alegria e a dor que pode até não ser minha, nem sua, mas de quem vai ler, ouvir, sentir. o que mais gostei de tudo? o "docemente mentirosos"... beijos

 

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