Deve Ser Sorte
A última vez que vi, ou melhor, ouvi, o Sampaio foi naquela manhã de segunda. Eu tinha pego no sono dentro do Santana esquentado que jogaram na mão da gente quase uma semana antes pra seguir o tal sujeito. "Levanta, levanta! O cara tá saindo!". Eu tava suspeitando que nossa campana tava furada, mas o Sampaio dizia que tinha "faro de policial" e que era só ter paciência. Acordei assustado, o sol na minha cara, o Sampaio cutucando, só acordei mesmo com o barulho do tiro e o Sampaio caindo por cima da direção. A adrenalina subiu pra cabeça, passou sono, enjôo, a ressaca, tudo. Mirei certeiro, bem no peito. Saí de perto do carro rapidinho, o Sampaio caído por cima da direção, a buzina à mil. Nunca torci tanto pra achar um ponto de ônibus. Achei um, bem cheio e logo passou uma linha que cortava uma vilazinha na beira da Avenida Brasil, onde eu morei uns tempos com uma mulher chamada Heleonora. Ela dizia pra todo mundo que era Chirley, assim, com "C" mesmo, dizia que era pra ficar diferente das outras Shirleys, mas ela não lia nem escrevia muito bem. Mas era direita, trabalhava como merendeira numa escola no Governador. Descobri que ela chamava Heleonora um dia que ela voltou pra buscar o crachá que tinha esquecido em casa. Parei numa birosca da vila, modo de dizer, era uma favela bem na beira da pista. Tomei duas doses de estômago vazio, vi todo o movimento dos homens indo e voltando do lugar onde deixei o Sampaio. Gente boa. Sampaio era civil aposentado e apesar de ter uns 50 ou 60 anos não tinha casado há muito tempo, tinha um guri de 14 anos. Me levou pra conhecer a família da mulher dele num churrasco em Cascadura. "Relaxa, rapá! Eu costumo dizer que o que a Agência junta nem Deus separa!". A Agência ia cuidar do corpo do Sampaio, ligar pra mulher, pagar escola pro garoto. E eu tinha mais era que dar o fora dali. Ainda sem comer nada fui pro centro. Atravessei a Cinelãndia fazendo um cálculo que já passava um pouco das dez da manhã. Meu estômago ardia. Contornei o passeio público, cheio de cinemas pornôs, cursos de datilografia, hotéis baratos e igrejas pentecostais. Lá no final avistei os arcos. Segui pela direita até bem embaixo e fui atravessar na faixa, bem onde bifurca a rua do Riachuelo e a Mém de Sá. Vinha um Passat, eu ia adiantado dele, na faixa, de repente puxou pra cima de mim. Voltei dois passos e voei pra calçada. Coração na boca, o cara nem parou pra ver. "Deve ser sorte. Ou o Sampaio me chamando. Não é meu dia, hoje não". Subi pra Lapa, arrumei uma pensãozinha no final da escadaria do Selaron. Coisa simples mas limpa. A dona era uma senhora com jeito de ser do norte, uns 40 anos, morena, cabelo cacheado, bem cheio. "Vêio a passeio ou a trabalho?" "Estou de passagem, desaluguei um quarto-e-sala na Tijuca, vou passar uns três dias pra chegar junto com a mudança em outra cidade". E cortei o assunto perguntando se tinha água quente no chuveiro. Ainda sem comer nada tomei o banho e saí novamente. Tomei o metrô e desci em Botafogo, em frente a uma agência de venda de passagens. Um cartaz bem grande fazia propaganda das cidades históricas de Minas. Lembrei na hora da minha tia Isaura, que morava em Divinópolis. "Deve ser sorte!Valeu, Sampaio!". Comprei a passagem e liguei pra tia. Ela, claro, ficou toda contente de saber que eu ia passar uns dias na cidade com ela. Me despedi e prometi estar lá em dois dias. Voltei à pensão e dou de cara com dois policiais saindo da casa. Fiquei branco. Conheço policial pelo cheiro, é igual ao do Sampaio, não tem erro. Um gordo de bigode me deu bom dia por trás das lentes do ray-ban. Lá no meio da sala, atrás dele, um outro, branco e vermelho que nem um pimentão, beijava o pescoço da dona da pensão. "Jorge, esse é o seu Ramalho, hóspede novo, se comporte", disse ela ajeitando o vestido. Acenou com a mão, respondi com um tudo bem e sem acreditar no susto, passei pro quarto, mais uma vez achando que era a mão do Sampaio me fazendo pagar um mico, lá do além. No outro dia fui a sala só tomar café e foleei os jornais muito rapidamente. Apenas um jornal popular deu a morte do Sampaio. "Acerto de contas ", "vingança pessoal" e "polícia investigando". Nada sobre outra pessoa envolvida ou foragida (no caso, eu). Lá pra uma da tarde a dona veio saber se eu não queria almoçar alguma coisa. Buzina da barca cruzando a baía. A cabeça do Sampaio contra a buzina do carro. Niterói lá ao fundo. Na manhã da minha saída, tornei a cruzar com Jorge quando fui fechar a conta. Ele parecia bem mais tenso e bem menos simpático que dois dias antes. "É a morte daquele seu colega aposentado, não é? Olha a gente vai na Estudantina hoje, relaxar desse teu plantão...". Agradeci a hospitalidade e rumei pra rodoviária. No outro dia pela manhã já tomava café na casa da tia em Divinópolis. "Tá tão magrinho você, João! Não devia ter ficado acanhado de ligar esse tempo todo, vinha aqui mais vezes, Rio de Janeiro é muita pressão, meu filho!". Sentindo o cheirinho da chuva batendo no chão do terreiro, me perdi em pensamento e só consegui dizer: "Deve ser sorte, tia. Deve ser sorte...".
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