Adeus, Camarada Leão
Ao voltar para Teresina após uma faculdade e um casamento desfeito em Belo Horizonte, lá pelo final dos anos 1980, Fernando Conrado deu de cara com uma cena musical acanhada por uma forte corrente de bandas de metal. Tocar na rádio era algo distante (com a desculpa que a qualidade do que se fazia aqui não se equiparava ao que era atochado pelas majors) e até mesmo pejorativo aos olhos dos roqueiros mais ortodoxos. Conrado montou o Asseclas pra nadar contra toda essa maré, lançando um disco independente, voltado pras rádios, e fundando, com Gilson Caland, a Grafitti Produções, responsável por lançar disco e fazer as vezes de produtora de shows. Havia toda uma preocupação de montar uma estrutura para, ao menos, tentar trabalhar com o mínimo de esmero e seriedade em meio a uma cena mambembe. "À Procura de Identidade" saiu em 91 e unia nomes já renomados como o guitarrista André Luís a novos talentos, na época, de Paulo Utti, Alan Vieira e Marlon Rodner. O disco tocou bastante nas rádios locais, apesar de uma receptividade péssima na mídia fora do estado, em boa parte devido à questões técnicas da gravação. Mas o forte do talento de Fernando Conrado, sua poesia, já era presente e pulsante nos sulcos do vinil. "Fala" (a música de trabalho), "Gênero Humano" e "Pedras Imaculadas" mostravam uma qualidade lírica que parecia engessada no gueto da MPB. Seres urbanos que gritam para dentro, oprimidos nas sombras e afogados na alienação ao terem de fustigar com seus fantasmas. Nossa amizade começa logo após esse período, quando o Asseclas começou uma ciranda de formações, a última das quais, ironicamente, eu faria parte. Meu amigo André de Sousa e meu ex-professor Mike Soares foram tocar no Asseclas, e eu passei a me convidar a frequentar o escritório da casa de Fernando Conrado nos finais de semana, e apesar de não termos ficado amigos logo de cara, era inevitável que nossa paixão contígua por rock, literatura beat e outras disgreções artísticas aflorasse. As inúmeras idas aos ensaios do que viria a ser o disco "Não Aceita Conformado a Noite Mansa" acabaram em audições de Lou Reed, Television, Roxy Music, Echo & The Bunnymen e David Bowie, ou mesmo em algum filme a cabo na moderníssima TV Softvision. Só vim a me sentir realmente um amigo considerado quando minha banda à época foi chamada por ele pra abrir um show do Asseclas na concha acústica da UFPI; com som, luz e produção de primeira grandeza, marca registrada do "padrão Fernando Conrado". Fanático por The Doors, montou uma banda pra fazer uma show-tributo no dia exato da morte de Jim Morrisson, para um Clube dos Diários lotado até a tampa. Podia ter nadado no dinheiro, mas recusou-se a repetir o show ("vai banalizar"), rateou o cachê entre a banda e deu-se por satisfeito. Eu, que sempre fui visto com certa reserva pelos "amigos" músicos como um baixista "meia-boca", recebi o voto de confiança de fazer linhas de baixo de uma banda que não usava baixo, mais uma cortesia da amizade e confiança de Fernando Conrado. Já envolto em problemas pessoais, de saúde e brigando para se formar arquiteto, apesar de já imerso no mercado de trabalho, Fernando pôs o Asseclas um pouco de escanteio no início dos anos 2000, também, em boa parte, desiludido com a falta de seriedade de alguns dos músicos que vez por outra lhe acompanhavam ("prefiro pagar e não ter dor-de-cabeça", dizia com frequência). A fé e a esperança de voltar aos palcos rendeu uma tentativa de criar uma "acústico" do Asseclas, e assim apresentar a banda à "geração MP3". Mais shows frustrados o levaram a procurar a mim e outros parceiros mais próximos e assim dar uma roupagem mais atual a arranjos dos dois trabalhos da banda. Confesso que ouvia os arranjos originais e sentia que eles podiam ser tocados ora mais pesados, ora mais rápidos; que muita coisa podia ser enxugada e estirpada, melhorando a audição. Com carta branca pra mexer nos arranjos, uma "temporada" foi agendada para começar no teatro João Paulo II em março de 2006, com todos suando a camisa. A tarefa de trazer à luz essa nova roupagem não passou, infelizmente, de dois shows, por motivos que só um bussiness como show bussiness entende. Uma canção inédita, "Significado Secreto das Coisas", que havia aparecido nos ensaios apenas em voz e violão, virou um rockão no melhor estilo T-Rex, que agradou bastante Fernando a ponto de me chamar de "meu maestro" na apresentação nominal da banda (contrariando meu pedido que não fizesse isso e causasse assim uma saia justa com o resto da banda). Voltando a vida de cidadão comum, Fernando Conrado cultivava seu eterno retorno aos palcos com a produção de um interminável disco-solo, que desde a última sexta-feira, com seu desaparecimento, pertence a um espólio artístico a ser rateado entre esposa e filhas. Penso que não cabe aqui julgar erros, fraquezas e hipóteses. Cada pessoa cumpre sua rota, sua órbita e vive aquilo que Paulo Coelho (ora bolas...) chamaria de "lenda pessoal". Obrigado por dividir sua lenda , seu spot, sua alegria e suas lições, Camarada Leão; agora dê um passinho...