Terehell

terça-feira, fevereiro 28, 2006

O Adendo



Por volta das três da tarde parou na frente do flat em uma área nobre da cidade. Como ainda tinha algum tempo, foi até o orelhão. Discou o DDD. Do outro lado, em meio ao chiado, ouviu a voz embargada do pai. Respirou fundo e engolindo a emoção soltou:

“Sua benção, meu pai!”
“Jorge? É tu, menino?”
“O Senhor ta bom, pai?”
“Como Deus quer, meu filho. E que ele te abençoe. Ta frio por aí?”
“Ta um tiquinho, pai. O clima aqui é meio doido. Amanhece chovendo, de tarde faz sol. Ou o contrário”
“Lugar doido da peste!”

As notícias eram as de sempre. Seca, mais um sobrinho que nasceu ou está à caminho, um vizinho ou conhecido que morreu. Promete ao pai ir vê-lo em breve e responde afirmativamente quando este lhe pergunta se está dormindo bem. Diz que tem de desligar, pois tem uma reunião e volta a prometer encontra-lo em breve.

Alguns minutos depois toca a campainha do flat. Um rapaz moreno, corpo trabalhado, enrolado numa toalha, vem abrir a porta. Olha-o da cabeça aos pés.

“Pois não, amigo...”
“Marquei com D. Laura, às 15 horas.”
“Ah. Laurita, tem um sujeito te procurando aqui!

Laura aparece por detrás de uma porta sanfonada. Cabelos loiros, olhos castanhos muito claros que parecem faiscar ao ver Jorge ali em pé no meio da sala. Pede licença para vestir-se. O rapaz mostra a Jorge o sofá e senta-se ao seu lado enquanto pega um canudo fino e um espelho com algumas carreiras de pó. Oferece. “Carece não, agradecido. Fique à vontade”. O rapaz esfrega o nariz enquanto olha incrédulo e desconfiado para Jorge.

“Você é cana?”
Jorge ri, encabulado. “Sou não, moço”
“Terno bonito o seu. Vestido assim ou é cana ou é segurança.”
“Sou nem um nem outro não, seu moço...”

“Como você pergunta, hein, Renato? Vai cheirar essa porcaria lá dentro, vai!” A voz de Laura irrompe na sala e o rapaz moreno se atrapalha com o espelho na mão. Quase que simultaneamente, seu nariz começa a escorrer sangue. “Merda...” .Laura ri de Renato, um riso visivelmente sarcástico. Jorge está sem graça, as mãos entrelaçadas entre os joelhos. Renato se retira e Laura vem sentar-se ao lado de Jorge.

Jorge conta a ela detalhes do serviço, a conversa anterior com Apriggio e arremata falando que a aquela altura a secretária já deve te-lo encontrado morto. Laura parece extasiada a cada detalhe do acontecido. “Maravilha. Você me saiu melhor que a encomenda”. Renato vem do quarto assustado. “Laurita, está passando na TV que...” O instrutor para no meio da sala. Olha para Laura, um sorriso despreocupado à espera do final da frase, e Jorge, a face sem emoções, o nariz achatado, ajeitando o paletó para esconder a barriga. “Ta passando o que, querido?”

“Caralho, foi você... vocês...puta que pariu! Isso vai dar merda! Isso vai dar merda!”
“Renato, eu disse pra você parar de cheirar essa porcaria. Está paranóico”
Jorge fica tenso, mas nada diz.

Laura se levanta, vai mansamente em direção ao amante e passa seus longos braços bronzeados artificialmente em torno do pescoço do jovem. “Era ele ou você, meu amor...” Renato treme convulsivamente e gagueja que não precisava ser daquele jeito. Laura enfia a mão pela toalha e diz a ele para ir buscar uma mala que está no closet. Renato dá as costas e volta ao quarto. A toalha cai no meio do caminho.

“Olha, eu espero que esse dinheiro seja de boa servetia a você. Dá pra você ajeitar sua vida, aqui ou fora do país. Você tem como sair do país? Tem passaporte?”
“Sei o que vou fazer ainda não...Vou pro norte de volta, acho. Penso nisso depois”
“Faça como quiser. Apenas suma. Renato, cadê essa mala, meu filho? O rapaz quer ir embora, tem condução pra pegar”

Laura vai em direção ao quarto e pega a toalha que Renato deixou cai pelo meio do caminho. Jorge ouve uma discussão. Atrás da porta sanfonada ouve nitidamente Renato chamar Laura de ’louca’. Ouve também as palavras ‘corno’ e ‘gorila’. A discussão cessa, mas sem que nenhum dos dois volte a sala. Jorge limpa o suor da testa, seu semblante torna-se pétreo, Ajeita as costas em posição de sentido, tal qual aprendera quando servira o exército.

Coldre, pistola, bolso, silenciador. Caminha silenciosamente até a porta sanfonada, ouve gemidos. Dentro do quarto, sobre uma cama de casal reversível, Laura está de costas para Renato, agarrada ao encosto da cama. Ao passo que o casal ensaia uma troca de posição, Jorge atinge Laura entre os seios, e em seguida, numa precisão olímpica, acerta Renato à dois metros de distância bem no céu da boca, aberta por obra do espanto e do pavor.

Desmonta o silenciador, guarda a pistola de volta no coldre. Acha a mala bem na entrada do closet e volta os olhos rapidamente para os dois corpos: Laura de bruços, Renato caído para trás, o membro ainda rígido. Ao passar pela sala, abre rapidamente a maleta.

Dólar.
“Ao menos isso...”.

sábado, fevereiro 25, 2006

Alá-Lá-Ô-Ô-Ô...


Em um sábado de carnaval não pode faltar:

*Chuva

*Janelas fechadas

*Cortinas idem

*Muita cafeína e muita nicotina

* Pouca serotonina e nenhuma dopamina

*Uma TV no mudo

*Um computador ligado pro caso do mundo resolver acabar e você não ser o último a saber

*Planos de nunca mais fazer planos

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

É pro Gugu?


Não entendi isso ainda.
Não me perguntem como fomos parar aí.
Queria ver a cara de umas pessoas agora...

sábado, fevereiro 18, 2006

O Serviço


Empurrou a pesada porta de blindex e dirigiu-se a mesa da secretária. “Bom dia, gostaria de falar com o Dr Apriggio....”, disse num forte sotaque nordestino. A secretária encarou-o num misto de desdém e pouco-caso.

“Quem deseja?”
“Diga que é Jorge”
“Jorge de que?”
“Diga que é Jorge...Da prestadora de serviços”

(prestadora de serviço...esses paraibas não se enxergam)

“Dr. Apriggio, o senhor Jorge...da prestadora de serviços...Tudo bem...O senhor pode entrar, ele já está lhe esperando.”

Abriu um sorriso preso entre as bochechas, ajeitou a gravata e adentrou a sala do figurão. Sujeito alto, moreno, cabelo crespo aparado na máquina zero, uma ligeira barriga denunciava seus quase 40 anos. Estendeu a mão à Apriggio, igualmente alto, magricelo, rosto côvado, dedos amarelos de nicotina, cara e bafo de quem já estava no quinto uísque do dia. Apontou-lhe a cadeira.

“Meu rapaz, eu preferia ter ido ao seu encontro num lugar mais discreto, mas devido a natureza do meu problema eu não queria nem que as pessoas que trabalham próximas a mim soubessem desse nosso contato. Você compreende não é...?”

“Sem problemas, doutor. Mais discreto que o seu escritório, impossível. E não se avexe não, discrição é meu lema.”

Na seqüência, Apriggio lhe passou detalhes do caso. A mulher, depois de trinta e tantos anos de casamento, estava saindo com o personal trainner, gente de dentro de sua casa, indicado pela filha, que Apriggio também achava que o sujeito traçava. Ele próprio, dirigindo o carro particular, tinha dado flagras a distância na mulher com o amante. Mas não tinha coragem de finalizar o rival. Olhava Apriggio com uma certa pena. Em sua terra, os cornos eram cabras dignos de dó, ninguém chamava o outro de corno á troco de nada, nem de brincadeira. Era passível de morte, assim como as adulteras eram punidas com seus amantes pelas próprias mãos do chifrado. Já dizia seu avô, que também fora pistoleiro: “Honra se lava só com sangue”.

“Aqui nesse envelope tem todas as instruções. Horários, o endereço do cretino, local de trabalho, locais públicos que freqüenta. Depois suma, não quero mais saber de ver você nem ser ligado ao sumiço desse desgraçado, está entendido?”. Jorge fez que sim, embora perdido em pensamentos olhando os quadros atrás de Apriggio: Apertos de mão com árabes, de esquis num cenário todo branco, uma foto mais moço e igualmente cadavérico. Deteve o olhar na foto de casamento. A esposa era muito bonita. Correu os olhos mais um pouco e percebeu que o tempo fez bem mais estragos a Apriggio que a ela. Continuava bonita. O Personal funcionava.

“Vou lhe pagar logo, assim não temos de nos encontrar novamente pra nada, você some e acabou-se. Vai lá pra sua terra, ou pro litoral. Essa grana dá até pra você viver no exterior, se quiser, por um tempo”. Puxou uma maleta preta por debaixo da mesa. Dólar. O olhar de Jorge continuou distante. “Tudo bem, Doutor”, foi dizendo e também colocando uma pesada pasta de couro preto sobre a mesa. “Pro senhor ficar mais seguro, vou lhe dar um recibo”.

Apriggio ia perguntar que brincadeira de recibo era aquela quando recebeu um tiro certeiro bem no meio da testa. Um pequeno filete de sangue escorreu entre seus olhos, e quando este caiu pesadamente sobre a mesa, pequenos pedaços de massa encefálica escorreram da foto dele no primeiro aniversário do neto, logo atrás de sua cadeira. Jorge rapidamente desmontou o silenciador da pistola, guardou-o no bolso, a pistola num coldre sob o paletó e transferiu os dólares para a maleta onde antes carregava a arma.

Ao sair da sala, cumprimentou novamente a secretária e avisou-lhe que o Dr Apriggio pedira para não ser incomodado até o final do expediente, pois estava com dor-de-cabeça e tinha tomado um comprimido. A secretária aquiesceu e até achou bom pois faria uma pausa pro café.

Diante do elevador, Jorge faz uma ligação do celular. “Bom dia, Dona Laura! Como tem passado? Olhe o serviço foi prestado...Sim, tudo nos conformes, mas eu esqueci de lhe prevenir e agora a senhora vai ter de fazer o pagamento em dólar, visse?”

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Cutucando a Onça


Não falei que era só eu dar a corda? Já conhecia umas pessoas interessadas em contar os faroestes do rock mafrense (como diria o falecido). Meu povo, eu não vou contar essa estória e suas estorietas, tá todo mundo vivinho da silva e ninguém tá sofrendo de Alzaymer ainda. É só catar o povo, essa é a parte mais dura, porque tem gente sumida e perdida aí pelo mundo, mas depois, um abraço.

Boa sorte a quem resolver fazê-lo, com certeza vai se divertir com muita estória cabulosa. Mas tem de ser sem censura, só tem graça cortando na própria carne. Com certeza a fraca memória material do rock local agradecerá.

E pra não dizer que não ajudei, vão aí três dicas de leitura, tanto pra instigar quanto pra dar uma idéia estética da parada:

MATE-ME, POR FAVOR: A ESTÓRIA SEM-CENSURA DO PUNK AMERICANO: de Gillian McGain e Legs Mcneil, conta de maneira bastante franca a saga do punk da costa leste americana, desde os precursores Velvet Underground, Stooges e MC5 até a ressaca vivida pela cena na metade dos anos 80, com a morte de alguns de seus expoentes. Alguns outros já morreram, infelizmente, depois do livro, o que só aumenta seu valor histórico. Destaque para os depoimentos de Danny Fields, ex-manager dos Stooges e dos Ramones (que curriculo...), muito sexo, drogas, rock'n'roll e lavação de roupa suja,

GAULESES IRREDUTIVEIS: CAUSOS E ATITUDES DO ROCK GAÚCHO: de Alison Ávila, o tema por si só já é dos mais interessantes, isolados geograficamente, com bom poder de aquisição e ávidos por boa música, os gaúchos exportaram pra todo o Brasil, apartir da segunda metade dos anos 80, bandas tão inusitadas quanto Engenheiros do Hawaii e Cascavelettes. O autor repassa através dos depoimentos " a estória do rock gaúcho sem nenhum dano cerebral" como dizia aquela música da Lovecraft, do não menos doido Plato Divorak, um dos muitos personagens depoentes. Citando João Gordo (que não é gaúcho), na abertura de um dos capítulos, "não precisa ser doido, basta ser gaúcho",

DIÁRIO DA TURMA 1976-1986: A HISTÓRIA DO ROCK DE BRASÍLIA: de Paulo Marchetti, o surgimento das quatro principais bandas do rock candango (Legião, Plebe, Capital e Raimundos), o livro ajuda a entender um pouco do dia-a-dia da garotada que tinha acesso a informação mas morava no meio do nada. Nenhum sexo, benzina e punk rock circa '77, entrecortados com festas, rockonhas, playboys e shows no melhor estilo "do it yourself".

No mais eu quero é ver o circo pegar fogo. Ou me queimar junto. "No one here gets out alive", sempre.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

A Dura, Parte I - Caé Pesado


Nunca tive grandes envolvimentos com a polícia, apesar de ter alguns amigos, chegados e até parentes policiais, civis, militares, federais, etc. Tenho sorte das vezes que a ‘dita’ cruzou meu caminho foi de maneira cômica, mas dou meu desconto aos protetores da sociedade, eles só estão lá defendendo o deles, mesmo que de forma atrapalhada.

Quem passasse, por volta de 1996/97, naquele pedaço da Quintino Bocaiúva, entre a Benjamin Constant e a avenida Campos Sales, bem no centro da cidade, não desconfiaria que por trás de um portão baixo escrito “garagem” funcionava um bar. O Cabo Caeseral saiu da cabeça antenada de Rubinho Figueiredo, uma figura que por si só já daria um blog inteiro. Decidido a viver de música, Rubinho cansou de peregrinar nos botecos da cidade dando canjas e matando um troco com o violão debaixo do braço. Um dos bares onde ele ‘passava o chapéu’ ficava perto da casa de sua avó e, chegado a um rabo-de-saia, Rubinho logo jogou suas tranças (e tiques) pra cima de uma das irmãs que tomavam conta do bar, duas beldades filhas da cidade de Piracuruca (a outra irmã...bem, abafa o caso). Ao invés de cair nas presas do galanteador, a moça passou o bar para Rubinho, pois já estava de saco cheio dali.

Nosso herói vislumbrou ali um filão: abriria um bar onde poderia tocar, ganhar dinheiro significativamente com bebida e também acolher a profusa produção cultural local (quando eu digo que esse papo é véio...). Como de boas intenções o inferno está lotado, foi criado o projeto conhecido por “Lança-Banda”: Nos domingos à tarde o Caeseral abriria suas portas para três atrações e mais uma jam no final (todo mundo tocando de graça, só pela oportunidade de poder pisar num palco). É lógico que o lugar pipocava de gente, e Rubinho e seu sócio, Paulo Utti (hoje no Mano Crispim), tinham um certo tino pra escalar o povo. Numa dessas escaladas deveriam tocar algumas bandas da zona norte, entre elas o Terra Podre, do hoje Káfila Eduardo Crispim (o Terra tinha uma performance muito extrema, com direito a moshes de peito no cimento, mas deixa que eles voltam mais adiante...) e mais o Monasterium, que depois de dois anos ensaiando, e fazendo muito boca-a-boca, finalmente iria mostrar um pouco de serviço.

O fato é que nesse dia Paulo Utti deveria tocar em um aniversário, e Rubinho descuidou achando que tudo sairia tranqüilo. O local encheu rapidamente e Rubinho se viu de mãos na cabeça. Como eu e o Saldanha estávamos de bobeira por lá, resolvemos ajudar a vender no bar, assim Rubinho poderia tomar conta do som, emprestado do Lino, pra variar. Estava tão cheio que não percebemos a chegada de três homens vestidos de cor cinza e portando pequenas metralhadoras na mão.

“Vocês estão vendendo bebida a menores aqui?”. Tinha tão pouco contato com um policial que demorei a perceber que era um. Apontei para um cartaz atrás de mim que avisava da proibição de venda de álcool a menores. “Quero ver sua documentação, nós recebemos uma denúncia que vocês estão irregulares por aqui”. Rubinho puxa um dos guardas até a cozinha do bar e saca um calhamaço de papéis, nervosamente. Lá fora, o som para e as pessoas, notando a presença da policia, começaram a ficar um tanto agitadas. Depois soubemos que um dos policiais chegou a sugerir, próximo a uma amiga nossa, atirar para o alto a fim de dispersar as pessoas e irem embora logo, fechando o bar.

“Olha você tem toda a papelada, mas eu vou ter de fechar seu bar, porque uma pessoa de preto chutou o cachorro do seu vizinho do lado aí fora”. Rubinho entrou em pânico, tentou argumentar que mandar as pessoas embora, aquela altura, causaria uma confusão tremenda. “Se vire! Ou você vai lá e manda todo mundo embora ou nós atiramos no som!”. Acabou sobrando pro guitarrista Mike Soares, que apareceu de “turma-do-deixa-disso”, ir até o microfone e explicar a situação. Aos poucos o local foi esvaziando e quando Rubinho passava o cadeado no portão o Monasterium chegou em grande estilo, totalmente paramentado, para o seu grande show de estréia, que já tinha sido desmantelado não tinham nem eles saído de casa ainda.

O Caeseral durou cerca de um ano e meio, mas o projeto Lança-Banda migrou para outros espaços ainda por um tempo, botando muita gente boa no palco pra dar a cara à tapa pela primeira vez. Com polícia ou sem polícia.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Mondo Cane


Um dia passou a ser seguido pela figura de um cão. Um cão pequeno, feio, de grandes presas inferiores, que saltavam, salientes, por sobre as bochechas moles. De um humor um tanto estranho, ora preguiçoso, nas horas mais relaxadas, outras nervoso, tenso, excitado e alerta quando parecia encarar uma situação que lhe parecia adversa.

Por vezes acordou com o cão sobre ele na cama. Seu peso não o deixava levantar, e ao tentar remover o bicho, este levantava uma das pesadas pálpebras e parecia dizer-lhe “Fique aí mesmo, afinal quem tem dentes um dia acaba mordendo...”. Seguiam sempre os dois, lado a lado, na rua. Se parava para contemplar um edifício, uma praça, uma vitrine, lá estava o cão, roto, parado ao seu lado, um palmo de língua do lado de fora da bocarra, seu pêlo e pernas curtos, mas fortes, fatalmente o derrubaria se tentasse correr dele ou enfrenta-lo de homem para cachorro.

Acabou se acostumando a presença do bicho, mesmo não encontrando resposta do porque do mesmo segui-lo a toda parte. Entretia-se no trabalho e quando, num lapso, por um segundo, a atenção lhe fugia, lá estava o cão, olhar sonolento, cabeça chata apoiada nas patas dianteiras, fitando-o. Ia ao banheiro, e o quem-sabe-inimigo invisível dava uma pequena folga a sua vigília para beber água da banheira, talvez para não constrange-lo. Acordava no meio da noite só para ter certeza que ele estaria na entrada do banheiro e soltaria uma baforada de tédio, sob a cara mole.

Um dia notou que o cão ia ficando transparente, e, à medida que o tempo passava, sumia uma orelha, uma perna, parecendo estar sendo apagado por uma borracha. Não demorou e a presença do cão era sentida apenas metafisicamente, às vezes ouvia um suspiro de tédio, um espirro ou o tilintar da plaquinha da coleira, mas muito ao longe. Até que parou de sentir sua presença, e sentiu sua falta. Arrependeu-se de não tê-lo desafiado, levado uma mordida, teria lhe restado ao menos uma cicatriz. Pensou porque não lhe comprou uma bola vermelha, assim poderiam brincar em meio aos passeios; ou mesmo um osso artificial, para divertir-se vendo-o entretido com a peça falsa.

Um dia não resistiu mais: jogou de ponta a ponta no jogo do bicho. Cachorro. Deu milhar. Largou o emprego e abriu um canil.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Inferno no Olimpo


É difícil tentar explicar, hoje, o que era fazer um show de rock em Teresina há doze anos atrás. Hoje vivemos na era da internet, da MP3, crianças andam com celulares na escola e uma série de facilidades de comunicação, coisas que em 1994 eram pura ficção científica, coisa de filme de Hollywood. Vivia-se a desconfiança do Plano Real, que dali a alguns meses nos jogaria de pára-quedas no sonho do Dólar um-por-um, aumentando não só o poder aquisitivo das pessoas, mas viabilizando a compra de instrumentos e equipamentos importados (entendam-se instrumentos que podiam se chamados de ”bons”).

Mas aqui ainda não havia uma confiabilidade nem mesmo no nome das bandas, pelo menos não a ponto de se ligar pra uma equipe de som querendo contrata-la e não levar o telefone na cara. Pior ainda eram os espaços pra shows. O Encena (um bar GLS situado na avenida Campos Sales, num galpão industrial, e que cedia uma noite na sua programação para shows) e o Teatro do Boi (no Matadouro, bairro da zona norte fora, e já bem afastado, do centro, um equivalente da época ao Noé Mendes em magnitude de shows), os dois points da época, estavam fechando as portas, apesar do comparecimento do público. Um misto de bar com programação alternativa e "open house", o Zeus tinha contra si a vizinhança. Ficava no final da Senador Teodoro Pacheco, ladeado pelo baixíssimo meretrício e pelos armazéns do cais do Parnaíba. Lá, na noite de 11 de junho de 1994, um sábado, eu subi num palco pra tocar rock pela primeira vez na vida.

Não havia muitas opções: éramos uma banda desconhecida, tocando barulheira, e precisávamos começar a tocar em algum canto, depois de três meses socadando os instrumentos numa garagem do Acarape. Tínhamos de ficar, obviamente, à sombra de uma banda um pouco mais conhecida, ao menos; coisa que foi relativamente fácil de resolver com uma mãozinha da Viagem Aflita do Betume da Judéia, então com um pouco mais de “estrada” que nós. Tinha tudo pra sair perfeito. Jefferson Costa, um amigo de um amigo da UFPI, fez o cartaz, todo de colagens, bem “punk”, e várias xerox foram espalhadas pela cidade. O som foi alugado do Lino, que vêio a se tornar depois o primeiro dono de um estúdio de ensaios na cidade, funcionando nos fundos de sua casa, ao lado do terreiro de umbanda pertencente a sua mãe. Era um equipamento modesto, mas bem operado, e serviria como uma luva. Meu nervosismo quanto ao sucesso dessa primeira empreitada só piorou quando eu cheguei a esquina do Zeus. A rua estava tomada de gente até o cais da Avenida Maranhão. Confesso que estava até mesmo cansado, pois tivera de carregar as caixas do P.A a tarde, parte do “contrato”.

Vejam bem: era um show com lotação garantida, só no boca-a-boca, o que já garantia grande coisa; não fosse um pequeno descuido. Pensamos em tudo, menos em como cobrar entrada. Por uma praticidade, e também pra não entrar em conflito com a direção da casa, mantivemos o couvert artístico que era cobrado usualmente, mas, ingenuamente, não frisamos isso na divulgação. Muitas pessoas foram até lá achando que o show seria de graça, e noutra ingenuidade, não colocamos ninguém na porta pra cobrar o couvert logo na entrada. Por “muitas pessoas” quero dizer quase a totalidade das pessoas que fariam parte de alguma banda nos anos seguintes. É fácil encontrar quem tenha ido ao Zeus naquela noite, não só entre os músicos, mas também pessoas ligadas a cultura em geral, e todos eles são unânimes em afirmar: Não fosse a cobrança do couvert, a balburdia que estava prestes a se instalar no local não teria acontecido.

Nós, como banda desconhecida, tínhamos de servir de boi-de-piranha e abrir o show. Tudo bem, não fosse um punk de quase 2 metros de altura ter a brilhante idéia de instalar uma cadeira bem ao meu lado para resolver o problema do palco baixo demais para os clássicos "stage dives". Cada vez que ele pulava, suas longas pernas acertavam o braço do baixo, me fazendo não só errar tudo, mas me perder totalmente na execução das músicas. Corajosamente, nosso set tinha 70% de músicas próprias (o que até hoje é um ato de coragem), e os covers eram coisas obvias da época, como Nirvana e Titãs.

Lá pelas tantas, já terminado nosso show, o garçom do lugar tem a brilhante idéia de sair, de pessoa em pessoa, cobrando o couvert. Não demorou muito pra muita gente se irritar e querer ir embora, no que foram contidos pelo pesado portão gradeado do Zeus. Com o lugar bem próximo de se tornar uma usina nuclear em pane, acontece a última coisa que poderia ter acontecido: um blackout. Existem várias versões pra esse blackout, não vou me prender a lendas e suposições, apenas vou me eximir de tê-lo provocado, até porque, naquele tempo, eu não teria a malícia de faze-lo a fim de tentar esvaziar o local (e hoje não o faria por uma questão de inteligência). Durante longos e intermináveis minutos o Zeus ficou banhado na mais densa escuridão, tempo suficiente para que alguns mais radicais usassem as pequenas pedras que calçavam o chão da área de show contra a Viagem Aflita, fato que eu também me eximo, já que fui atingido por algumas no meio da confusão. Quem já estava querendo sair aproveitou não só para abrir, mas também para arrancar fora, o portão e, em grande estilo, passear por sobre os carros estacionados na rua. Estava armada a saia justa. Como faríamos pra pegar o som e os instrumentos de dentro do Zeus sem levarmos, no mínimo, uma pressão pelos prejuízos?

Ao voltarmos, dois dias depois, a situação não era tão feia quanto imaginavamos. Fora o portão, que já havia sido recolocado no lugar, não houve prejuízos materiais realmente grandes (já os prejuízos pessoais foram maiores, visto que muitos, alguns que nem estiveram lá, nos culpam pela confusão até hoje) e voltamos a tocar no Zeus algumas vezes antes do seu fechamento definitivo. Nas muitas voltas que a vida dá, Vera Leite, uma das donas do Zeus, hoje administra um dos locais que mais acolhe (e bem) o rock teresinense, o Espaço Trilhos.

Assim, doze anos atrás, nos jogamos de cabeça no abismo. Sem rede de proteção.

sábado, fevereiro 11, 2006

O Penta


Desde que eu tinha 13 anos eu quis estar numa banda. Oito anos após esse desejo eu montei uma, e agora, quase vinte depois do dia que pusseram um disco do Motörhead no meu pé da orelha, eu estou em cinco.

É, você leu direitinho: Uma, duas, três, quatro, CINCO.

Não se afobem, porque até abril, ou antes, eu vou ser figurinha carimbada em cima dos palcos, mas, pra minha sorte, sempre ao lado de pessoas as quais eu posso chamar de amigas, senão não haveria sentido (e saco) pra sair pra ensaiar quase todo dia.

No meio desses amigos estão, além do meu amigo-de-fé-irmão-camarada Sandro Saldanha (pessoa que vai ganhar um capítulo na minha autobiografia não-autorizada hehe) duas pessoas as quais eu gostaria de dedicar esse post.

A primeira delas é um companheiro de velha e longa data: Antonio de Pádua Vasconcelos Belo, vulgo Patinho, meu brother desde o tempo em que eu ia da minha casa no centro até a casa dele no Barrocão e ficávamos ouvindo som na calçada, ou íamos, de ônibus, até o Mocambinho, nos sábados à tarde, ver ensaios do Avalon, pois não tínhamos idade pra freqüentar shows. Isso antes de internet, MP3, telefones celulares e afins!

Meu outro amigo que virou companheiro de banda é na verdade um Mestre Jedi. Fernando Conrado é um cara com muito talento (e não digo isso aqui pra puxar o saco dele porque ele me convidou pra ser da nova formação do Asseclas) e esforçado pra fazer as coisas bem feitas num cenário musical paupérrimo, capitaneado por pessoas que se acham donas dos meios de produção cultural ou de mídia. Fernando tem bagagem pra dar e vender, e por mais que alguns meios insistam em trata-lo como “dinossauro”, ele ainda vai deixar muita gente de boca aberta, pois não para de produzir. Na amizade do Fernando encontrei não só uma série de particularidades que fazem a gente brincar de dizer que um é alter-ego do outro, mas freqüentando a casa dele, em dias de ensaio ou não, pude usufruir uma cultura, em sons e letras, que eu conhecia de ouvir falar, mas nunca tinha tido, até então, acesso.

E como o melhor de estar numa banda é fazer amizades, estou nesse siribolo todo ao lado de pessoas que vi começarem a pegar gosto pela coisa indo aos shows do Káfila, como Leopoldo Jr e o Vitor; e mais pessoas que são grandes emanadores de energia positiva como o Vinicius “Bean” Rufino e meu parceiro karmico João José. Cinco empregos onde eu não reclamo de cansaço, não vou trabalhar de cara amarrada e nem preciso tirar férias.

Muitas vezes eu não tive a chance de agradecer as pessoas que são meus companheiros de banda, principalmente pela confiança e a amizade que depositam em mim. Acho que nunca decepcionei e vou continuar fazendo força pra não deixar o rock parar. No mais, como dizia aquele provérbio do IRC (alguém ainda usa isso?): “Amigo é quem lhe conhece muito bem, e mesmo assim ainda quer ser seu amigo”.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Ridi, Pagliaccio!


Detalhe da capa da minha auto-biografia não-autorizada, entitulada "210 Dias de um Palhaço", a ser lançada com farto coquetel depois que eu me for desse mundinho bizarro e não puder mais ser processado.

Três tomos de 400 páginas, contendo causos, lendas, power-chords, corações quebrados, mentiras sinceras, tretas, bebedeiras, overdoses, bastidores, groupies, mazelas, instrumentos quebrados, calotes e, de quebra, estórias que até Deus (ou quiça o Diabo) duvidarão. Mais bombástico que "Mate-Me, Por Favor!".

Adianto apenas que o texto de abertura, surrupiado de Mr. Jim Morrison:

"No One Here Gets Out Alive!"

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

La Degüela


Estava eu aqui procurando umas curiosidades sobre decaptações (calma, não vou me decaptar, nem fazer o mesmo com ninguém...) quando achei um texto muito legal no site da Fundação Joaquim Nabuco (PE) a respeito dos despojos do cangaceiro Virgulíno Ferreira, vulgo Lampião. A gente nasce aqui no NE, ouve a vida inteira falar de cangaço, mas acha uma coisa meio distante, quase lenda. Pois essa lenda tem coisas bem interessantes.

Ao ser morto, na localidade Angicos, às margens do rio São Francisco, em Sergipe, o poder e influência de Lampião estavam às quedas, em parte pela falência dos próprios coronéis que ele combatia. Das 38 pessoas que faziam parte de seu bando, 11 foram mortas pelas "matadeiras" (metralhadoras) da volante do Ten. João Bezerra, o restante fugiu pela caatinga. Numa mistura de barbárie e ostentação, João Bezerra ordena que as cabeças de Lampião, Maria Bonita e dos outros nove mortos sejam decepadas e, conservadas em latas de querosene da marca Jacaré, afim de serem expostas em todas as cidades ao longo do caminho até Salvador (BA), onde ficaram durante 21 anos em exposição pública no museu Nina Rodrigues, até que um incêndio consumiu o museu por completo nos anos 60.

Corisco, braço direito de Lampião, tentou continuar a saga do cangaço, mas foi morto, com sua companheira Dadá, pelo Ten.Zé Rufino, dois anos depois de seu chefe. Enterrado no interior da Bahia, o túmulo de Corisco foi violado dez dias após seu sepultamento, tendo seu braço direito e sua cabeça igualmente decepados e levados ao mesmo museu onde eram guardadas as cabeças de seus companheiros.

A grande parte dos outros cangaceiros sobreviventes foi capturada com vida. Como o governo de Getúlio Vargas aplicou uma anistia aos revoltosos da época, eles acabaram beneficiando-se dela, e terminaram seus dias como humildes lavradores, destino que também acolheu uma pequena parte dos asseclas de Virgulino, boa parte analfabeta.

Mas o destino mais irônico foi o do cangaceiro conhecido por Saracura. Em liberdade, Saracura fixou residência em Salvador, onde ingressou na vida pública como funcionário do patrimônio histórico, trabalhando até seus últimos dias de vida como vigia noturno no museu que abrigava as cabeças mumificadas de seus companheiros.

*Agradecimentos ao J. Pedro Sabóia pelas devidas correções.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Carta ao Blog





Caro blog:

Tudo bem?
Perdoe a minha ausência e a falta de notícias. Você sabe que a vida dá umas voltas muito bruscas e a gente fica tonto, perdido, faltando as pernas mesmo; então demora um tempo pra botar as coisas em ordem. Vou poupa-lo das noticias ruins. Creio que o hiato por si só já dá a magnitude dos acontecimentos. Vou resumir: estou como antes, mas não mais aproveitando do estado lânguido e propicio da solidão.
Agora ouço músicas tristes, tenho uma certa confusão mental, uma apatia momentânea, uma fadiga à tarde (que agora parece bem mais modorenta), e por mais que eu me empregue em atividades que julgo produtivas (e este ano tem de ser produtivo, de qualquer jeito), me vem uma onda de melancolia, um sopro de tristeza que por vezes me trás lembranças boas, mas que são sempre interrompidas por uma lembrança mais recente e amarga. Me falta aquele brilho, aquele achar graça de tudo.
O humor virou areia e me escorre pelos dedos. Se a frustração fosse um canhão, lhe diria que ando por aí com um buraco no peito, você entenderia bem a minha metáfora. Por mais que diga, e saiba, que isso pode passar, dói; tanto quanto um espinho, um caco de vidro ou um dente estragado.
Sim, amigo, eu tenho como sair disso, todos me dizem; mas quantas vezes eu já entrei e saí de coisas assim? O mundo é ruim ou eu sou ruim? Ora, veja só: o que resta da minha auto-estima chegou pra trocar seu turno com os outros males que me afligem a alma cansada. Ando vendo, ouvindo e lembrando de coisas em toda parte; é aí que sinto os verdadeiros sintomas da perda. Depois penso no depois, no como-vai-ser-agora, e caio novamente na tristeza. Será que me desacostumei dela? Será que a dei por vencida quando ela apenas foi ali tirar férias?
Ok, amigo, você não tem as respostas; e as que me foram dadas não são o bastante para que eu te convença repetindo-as aqui.
Por agora, esse pouco é tudo. Na próxima espero voltar com notícias melhores. Um forte abraço a todos.

A saudade é grande.